sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Que proposta é essa do Rito Amazônico?

Vamos começar dizendo como não se deveria entender a proposta de um Rito Amazônico: Há quem acredita que se trata da criação de um jeito novo e único de celebrar a Missa e os outros sacramentos para toda a região amazônica e suas várias culturas e povos indígenas. Ora, isso seria um “nivelamento” cultural que ignoraria a diversidade da região. Outros creem que o Rito Amazônico seria uma adaptação de algumas partes do Rito Romano. Isso seria uma atitude superficial, algo que não nasceria das culturas dos povos amazônicos. O Rito Amazônico não deveria ser entendido nem como uma coisa, nem como a outra; sua proposta pode ser acolhida com mais amplitude. 

 Primeiro é preciso compreender o que nesse caso significa “Rito”. Rito, nesse contexto, indica o conjunto de usos e de normas culturais, jurídicas, administrativas e ministeriais próprias de igrejas locais específicas. Portanto, Rito também é o mesmo que liturgia, isto é, a globalidade do complexo de usos litúrgicos, o inteiro depósito eucológico e o modo de celebrar as ações litúrgicas específicas de determinadas igrejas locais. 

 No ocidente temos alguns Ritos, como o Rito Romano, da diocese de Roma, celebrado em todo o Ocidente e em muitas regiões do Oriente, sendo o que mais foi popularizado e é o mais conhecido por nós; mas também temos o Rito Ambrosiano, própria da diocese de Milão, Itália; o Rito Hispânico ou Mozorábico, celebrado na Catedral de Toledo, na Espanha, e reformado de acordo com as orientações do Vaticano II; e o Rito de Braga ou bracarense, celebrado na Diocese de Braga, Portugal. O Rito Amazônico seria mais um rito ocidental, nascido das igrejas locais da região pan-amazônica. 

 Contudo, a proposta de um rito novo não precisa significar propor um único jeito de celebrar a fé, os sacramentos e a vida, para todos os povos da Amazônia. Olhemos mais atentamente o que se passa com o mais popular dos ritos ocidentais, o nosso famigerado Rito Romano. 

 De fato, dentro do único Rito Romano existem cinco formas do mesmo Rito Romano. Temos a forma ordinária, celebrada segundo os livros litúrgicos promulgados por Paulo VI e por João Paulo II; mas há também a forma extraordinária, celebrada segundo os livros litúrgicos em vigor em 1962 e retomados por Bento XVI na Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Summorum Pontificum. A estas duas formas, se acrescenta uma terceira, ainda não bem definida nos livros litúrgicos, constituída pela tradição litúrgica da comunidade anglicana, acolhida na plena comunhão com a Igreja católica seguindo a Constituição apostólica Anglicanorum coetibus de 04 de novembro de 2009. Finalmente, existem outras duas formas. Uma é ligada a algumas Igrejas particulares africanas e reconhecida como rito zairense, mais precisamente, se trata de uma significativa adaptação do Missal do Rito Romano para as dioceses do Zaire. A outra pertence a um movimento, o Caminho neo-catecumenal. Também aqui se trata de uma adaptação do Missal Romano.  

O Rito Amazônico não deveria ser mais uma dessas formas dentro do Rito Romano. Ao contrário, o Rito Amazônico poderia conter mais de uma forma dentro de si, dentro do mesmo Rito Amazônico, tal qual o Rito Romano contém 5 distintas formas com livros litúrgicos distintos. Além de poder ser um rito ocidental autônomo, a exemplo do Rito Ambrosiano, Bracarense ou como tantos ritos orientais que existem hoje na Igreja, o Rito Amazônico poderia abarcar dentro de si várias formas (ritos) diferentes, feitos um a um de acordo com a cultura de cada povo amazônico. Com efeito, a liturgia amazônica pode ser constituída com autonomia e criatividade que exprima de forma plural os diversos modos culturais dos povos amazônidas, com uma organização da vida litúrgica das igrejas locais, com celebrações dos sacramentos, com ritmos de ano litúrgico e proclamação dos tempos e modos de rezar específicos. Sabemos que as igrejas orientais possuem essa autonomia em seus próprios ritos. O Rito Amazônico poderia também ser lugar favorável para o desenvolvimento de uma expressão ministerial multifacetada e de rosto amazônico. Para além dos ministérios ordenados tradicionais de bispos, presbíteros e diáconos homens, e ministérios não ordenados – e também ainda não instituídos - como catequistas, que outros ministérios, inclusive que valorizem o papel da mulher nessa região, poderiam ser propostos?  

Um aspecto determinante para a formação e o desenvolvimento de um rito é uma fase inicial e demorada de gestação nas culturas. Depois, segue-se um grande momento de criatividade espontânea. Por fim, pessoas dotadas de espírito de oração e sensibilidade pastoral, codificam em textos litúrgicos o novo Rito.  

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Roteiro de Oração pelas crianças vítimas de violência sexual

AMBIENTAÇÃO E ACOLHIDA: música instrumental, silêncio e oração.

 

SAUDAÇÃO INICIAL:

 

Leitor/a: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

 

Todos/as: Amém.

 

Leitor/a: Deus, vinde em nosso auxilio!

 

Todos/as: Senhor, socorrei-nos sem demora!

 

MEMORIAL PENITENCIAL: Silêncio. (Pode-se acender uma vela)

 

SALMO 68(69), 2-22.30-37

O zelo pela vossa casa me devora

Deram vinho misturado com fel para Jesus beber (Mt 27,34).


 

R.:// Em seu grande amor, respondei-nos, ó Senhor!

 

2 Salvai-me, ó meu Deus, porque as águas *
a
 o meu pescoço já chegaram! 
3 Na lama do abismo eu me afundo *
e não en
contro um apoio para os pés. 
– Nestas 
águas muito fundas vim cair, *
e as 
ondas já começam a cobrir-me!

4 À força de gritar, estou cansado; *
minha gar
ganta já ficou enrouquecida. 
– Os meus 
olhos já perderam sua luz, *
de 
tanto esperar pelo meu Deus!

5 Mais numerosos que os cabelos da cabeça, *
são a
queles que me odeiam sem motivo; 
– meus ini
migos são mais fortes do que eu; *
contra 
mim eles se voltam com mentiras!

– Por acaso poderei restituir *
alguma 
coisa que de outros não roubei? 
6 Ó Senhor, vós conheceis minhas loucuras, *
e minha 
falta não se esconde a vossos olhos.

7 Por minha causa não deixeis desiludidos *
os que es
peram sempre em vós, Deus do universo! 
– Que eu não 
seja a decepção e a vergonha *
dos que vos 
buscam, Senhor Deus de Israel!

8 Por vossa causa é que sofri tantos insultos, *
e o meu 
rosto se cobriu de confusão; 
9 eu me tornei como um estranho a meus irmãos, *
como estran
geiro para os filhos de minha mãe.

10 Pois meu zelo e meu amor por vossa casa *
me de
voram como fogo abrasador; 
– e os in
sultos de infiéis que vos ultrajam *
reca
íram todos eles sobre mim!

11 Se aflijo a minha alma com jejuns, *
fazem 
disso uma razão para insultar-me; 
12 se me visto com sinais de penitência, *
eles 
fazem zombaria e me escarnecem! 
13 Falam de mim os que se assentam junto às portas, *
sou mo
tivo de canções, até de bêbados!

14 Por isso elevo para vós minha oração, *
neste 
tempo favorável, Senhor Deus! 
– Respon
dei-me pelo vosso imenso amor, *
pela 
vossa salvação que nunca falha!

=15 Retirai-me deste lodo, pois me afundo! †
Liber
tai-me, ó Senhor, dos que me odeiam, *
e sal
vai-me destas águas tão profundas! 
=
16 Que as águas turbulentas não me arrastem, †
não me de
vorem violentos turbilhões, *
nem a 
cova feche a boca sobre mim!

17 Senhor, ouvi-me, pois suave é vossa graça, *
ponde os 
olhos sobre mim com grande amor! 
18 Não oculteis a vossa face ao vosso servo! *
Como eu 
sofro! Respondei-me bem depressa! 
19 Aproximai-vos de minh’alma e libertai-me, *
ape
sar da multidão dos inimigos!

=20 Vós conheceis minha vergonha e meu opróbrio, †
minhas in
rias, minha grande humilhação; *
os que me a
fligem estão todos ante vós! 
21 O insulto me partiu o coração; *
não supor
tei, desfaleci de tanta dor!

= Eu esperei que alguém de mim tivesse pena, †
mas foi em 
vão, pois a ninguém pude encontrar; *
procu
rei quem me aliviasse e não achei! 
22 Deram-me fel como se fosse um alimento, *
em minha 
sede ofereceram-me vinagre!

30 Pobre de mim, sou infeliz e sofredor! *
Que vosso au
lio me levante, Senhor Deus! 
31 Cantando eu louvarei o vosso nome *
e agrade
cido exultarei de alegria! 
32 Isto se mais agradável ao Senhor, *
que o sacri
cio de novilhos e de touros.

=33 Humildes, vede isto e alegrai-vos: †
vosso coração reviverá, *
se procu
rardes o Senhor continuamente!

34 Pois nosso Deus atende à prece dos seus pobres, *
e não des
preza o clamor de seus cativos. 
35 Que céus e terra glorifiquem o Senhor *
com o 
mar e todo ser que neles vive!

=36 Sim, Deus vi e salvará Jerusalém, †
reconstru
indo as cidades de Judá, *
onde os 
pobres morarão, sendo seus donos. 
=
37 A descendência de seus servos há de herdá-las, †
e os que 
amam o santo nome do Senhor *
dentro 
delas fixarão sua morada


R.:// Em seu grande amor, respondei-nos, ó Senhor!


EVANGELHO (Mt 18, 1-10)

Naquele tempo, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: Quem é o maior no Reino dos céus? Jesus chamou uma criancinha, colocou-a no meio deles e disse: Em verdade vos declaro: se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos céus. Aquele que se fizer humilde como esta criança será maior no Reino dos céus. E o que recebe em meu nome a um menino como este, é a mim que recebe. Mas, se alguém fizer cair em pecado um destes pequenos que crêem em mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço a mó de um moinho e o lançassem no fundo do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis, mas ai do homem que os causa! Por isso, se tua mão ou teu pé te fazem cair em pecado, corta-os e lança-os longe de ti: é melhor para ti entrares na vida coxo ou manco que, tendo dois pés e duas mãos, seres lançado no fogo eterno. Se teu olho te leva ao pecado, arranca-o e lança-o longe de ti: é melhor para ti entrares na vida cego de um olho que seres jogado com teus dois olhos no fogo da geena. Guardai-vos de menosprezar um só destes pequenos, porque eu vos digo que seus anjos no céu contemplam sem cessar a face de meu Pai que está nos céus.

 

SILÊNCIO

 

PRECES:

Com humildade de coração, oremos a Deus, cujo amor e fidelidade perduram para sempre:

 

1.    Oremos pelas pessoas que sofreram abusos físicos, mentais, emocionais ou sexuais para
que o Senhor de toda a ternura e compaixão os restaure e lhes dê paz.

R.: Senhor tende piedade de nós!

 

2.    Oremos para que nos tornemos cada vez mais uma comunidade que protege ativamente as pessoas mais vulneráveis ​​da sociedade, especialmente nossas crianças.

R.: Senhor tende piedade de nós!

 

3.    Oremos para que o Espírito de Sabedoria ilumine as pessoas para que ponham fim aos atos de violência e abuso.

R.: Senhor tende piedade de nós!

 

4.    Oremos pelos profissionais que colaboram na cura daqueles que sofrem violência e abuso, para que Deus lhes dê uma abundância de sabedoria, compaixão e amor.

R.: Senhor tende piedade de nós!

 

 

PAI NOSSO pelas crianças vítimas de abuso sexual

Todos/as: Pai Nosso que estais nos céus!
Leitor/a: Seja tu também o pai das crianças vítimas de abuso e exploração sexual.

Todos: Santificado seja o vosso nome;
Leitor/a: Seja a tua santidade a barreira contra toda maldade humana, em qualquer lugar, em qualquer momento.
Seja o furor da tua pureza como cordas impedindo adultos de abusarem de crianças e adolescentes.

Todos/as: Venha a nós o vosso Reino;
Leitor/a: Que o teu Reino inunde cada canto escuro e insalubre do Brasil onde crianças são presas, manipuladas, exploradas.
Que brilhe como uma aurora a esperança de salvação que vem de ti! E que venha, de fato, o teu reino.

Todos/as: Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu;
Leitor/a: Que o desejo louco do pecado seja enfraquecido pela vontade poderosa do Senhor.
Que haja arrependimento e transformação nas mentes de quem abusa de crianças, mesmo que para isso seja necessário privação de liberdade e dor pelas consequências.

Todos/as: O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
Leitor/a: Que não falte sustento a crianças abusadas e exploradas.
Que a fome não seja usada como instrumento de manipulação psicológica contra elas.

Todos/as: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido;
Leitor/a: Que não sobre ódio e que não falte perdão.
Que o Senhor cure as feridas das vítimas e também traga salvação para quem abusou delas.

Todos/as: E não nos deixeis cair em tentação, mas livra-nos do mal,
Leitor/a: Que a tentação sexual não domine os corações humanos ao ponto deles seguirem em frente com suas intenções impuras contra crianças.
Que o Senhor livre-nos do mal que há dentro de nós e livre as crianças de se tornarem vítimas deste mal.

Todos/as: Porque vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém.
Leitor/a: Que o Senhor nos ensine a confiar em teu poder e em tua glória, mesmo que a realidade seja tão dura.
Que o Senhor seja o Rei de cada criança vítima de abuso. Que ela encontre em ti o abrigo seguro em meio ao temporal.

(Adaptado de Lissânder Dias: http://ultimato.com.br/sites/fatosecorrelatos/2016/05/18/pai-nosso-pelas-criancas-vitimas-de-abuso-sexual/ Acesso em 17/08/2020)

 

ORAÇÃO FINAL
Deus, nossa rocha e nossa força em quem nos apoiamos,
ajudai-nos a criar uma atmosfera de confiança
que permite dizer o indizível.
Ajudai-nos a viver com nossas memórias dolorosas.
Que possamos apoiar uns aos outros e ser lugares seguros uns para os outros.
Por Cristo, Nosso Senhor.

 

CANTO

Amar Como Jesus Amou

Padre Zezinho

Um dia uma criança me parou
Olhou-me nos meus olhos a sorrir
Caneta e papel na sua mão
Tarefa escolar para cumprir
E perguntou no meio de um sorriso
O que é preciso para ser feliz?

Amar como Jesus amou
Sonhar como Jesus sonhou
Pensar como Jesus pensou
Viver com Jesus viveu
Sentir o que Jesus sentia
Sorrir como Jesus sorria
E ao chegar o fim do dia
Eu sei que eu dormiria muito mais feliz

Ouvindo o que eu falei ela me olhou e
Disse que era lindo o que eu falei. Pediu
Que repetisse, por favor, que não falasse
Tudo de uma vez. E perguntou no meio
De um sorriso o que é preciso para ser feliz

Depois que eu terminei de repetir, seus
Olhos não saiam do papel. Toquei no seu
Rostinho e a sorrir pedi que ao transmitir
Fosse fiel. E ela deu-me um beijo demorado
E ao meu lado foi dizendo assim

Roteiro com Adaptações de “Day of Prayer for Survivors and Victims of sexual abuse”

Em https://www.catholicbishops.ie/2018/02/05/day-of-prayer-for-survivors-and-victims-of-sexual-abuse/ Acesso em 17/08/2020)  

sábado, 27 de junho de 2020

Novo Diretório para a Catequese: Comentário, Download e indicações para tempo de Pandemia


Fiquei inquieto com o lançamento do novo Diretório para a Catequese (2020). De fato, tinha escutado por aí que o PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO (PCNE), atual responsável pela catequese no Vaticano, iria deixar de existir com a reforma da Cúria empreendida pelo papa Francisco. Criado por Bento XVI, o PCNE assumiu a catequese no lugar da Congregação para o Clero. Mas o lançamento do Diretório para a Catequese nos leva a crer que esse órgão não deve deixar de existir tão cedo. Além desses dois organismos vaticanos, existe ainda a Congregação para a Evangelização dos Povos, chefiada pelo cardeal Tagle, que poderia muito bem assumir o trabalho do PCNE e a catequese. O número de departamentos da Cúria Romana ainda precisa ser enxugado. 

Apesar de lamentar alguns pontos do documento, a impressão que tive do Diretório para a Catequese é muito positiva. Temas extremamente importantes tiveram tratamento ampliado: migrantes, povos nativos (indígenas), população encarcerada, a temática da catequese e ecologia, a cultural digital, a explícita opção preferencial pelos pobres.. são todos apelos universais nos dias de hoje e que foram abarcados pelo texto. 

Acho que a maior deficiência do Diretório é o lugar não primordial que a Bíblia ocupa como fonte da catequese - ela figura entre as outras fontes. No Brasil a nossa “velha” ‘Catequese Renovada’ já afirmava o lugar essencial do Bíblia em 1983. O cardeal Fisichella, chefe do PCNE, situa o Diretório na comemoração de aniversário de publicação do Catecismo da Igreja Católica. O PCNE parece valorizar mais o Catecismo e menos a Bíblia na catequese. É como o próprio Fisichella falou durante a apresentação do novo Diretório, a comemoração do Catecismo toca diretamente o departamento dele, visto que já tinham ficado responsáveis pela promoção do Ano da Fé, promulgado por Bento XVI entre 2012-2013, para a revalorização do Catecismo. Na Santa Sé a Pontifícia Comissão Bíblica conversa pouco com o PCNE, enquanto que no Brasil a CNBB assegura a unidade entre Bíblia e Catequese pela Comissão para a Animação Bíblico-Cateqúetica, órgão responsável pela catequese e pela animação bíblica da pastoral. 

O novo Diretório deve muito também à experiência de Iniciação à Vida Cristã da América Latina. Além de assumir o catecumenato como inspiração para toda a catequese, o novo texto vaticano está repleto de intuições da Conferência de Aparecida. Há umas 7 citações, incluindo a de discursos de Bento XVI na abertura da conferência. Nenhuma outra conferência, de nenhum lugar do mundo, é citada. Seja lá quem forem os influentes latinos envolvidos com a redação do Diretório, eles trataram de incluir a perspectiva da Iniciação à Vida Cristã de inspiração catecumenal e de tornarem o Documento de Aparecida fonte de um texto da cúria romana, quando ninguém mais o é.

 Fisichella sustenta a necessidade de um novo Diretório a partir de dados sobre a situação de evangelização e iniciação cristã hoje na Igreja: a identificação da catequese com o esquema escolar, e a mentalidade de uma catequese feita para a recepção dos sacramentos. De fato, acho que o Diretório Geral para a Catequese (o antigo) já respondia a essas questões que nos interpelam ainda hoje, exceto no que se refere à novidade da cultura digital. Ele dá grande relevância a esse tópico. Pastoralmente, a prática dos catequistas no Brasil é bem deficitária nesse aspecto. Penso que a pandemia do Covid19 ajudou a demonstrar isso. Mas é um assunto complexo. Há muitos catequistas e catequizandos desprovidos de acesso à cultura digital. As realidades são muitas... Há ainda no nosso país um problema muito maior: o protagonismo dos conservadores nessa área digital (como Pe. Paulo Ricardo, vários YouTubers, o site "O Catequista" que têm livros publicados pela mesma editora que publicou Bento XVI no Brasil, etc). Enquanto isso, a CNBB e outras grupos que dependem da boa vontade de voluntários, ainda patinam nesse campo (veja, por exemplo, o site catequese do Brasil, mantido pela CNBB). O Brasil padece de uma televisionalização da devoção popular que cada dia toma ares de devoção midiática criada por grupos flertadores do governo Bolsonaro, e padece também de uma catequese doutrinária impulsionada por gurus digitais que ganham muito dinheiro com isso. Mas, talvez, para a CNBB, esse alerta do novo Diretório para a Catequese sobre a cultura digital, desencadeie novas iniciativas. 

Numa recentemente entrevista a uma jornalista amiga, quando ela me perguntou sobre os desafios da catequese no século XXI, eu disse: “O principal desafio para a catequese do século 21 é dar um passo definitivo na desescolarização da catequese que supere a mentalidade de “cursinho da fé para crianças”. A catequese de Iniciação à Vida Cristã de inspiração catecumenal é hoje o meio que a Igreja do Brasil orienta para colocar adultos, jovens e também crianças em contato com Jesus Cristo e ajudá-los a tornarem-se seus discípulos missionários. Abraçá-la e assumi-la é mais do que uma mudança de teoria, opção pedagógica, metodológica ou de técnica de comunicação. É tudo isso, porém é mais do que isso! Trata-se de uma renovação mais profunda, vivida pelos membros da comunidade inteira que são como que o verdadeiro audiovisual da catequese (Diretório Nacional de Catequese, n. 52). É abandonar o paradigma de catequese como meramente estudo de conteúdos da fé, e passar a compreender a catequese como processo para saborear a experiência do amor misericordioso de Deus e da amizade e desejo de seguimento de Cristo pelo impulso do Espírito que nos leva a comprometer com a transformação da realidade. 

O tempo de quarentena nos convida a olhar para a catequese desde casa como uma oportunidade para uma catequese personalizada de estilo catecumenal. “A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos - nesta ‘arte do acompanhamento’, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5)” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 169). Não só os catequistas, mas todos os membros dos diversos grupos, movimentos e pastorais da comunidade podem colaborar nesse gesto de proximidade. Cada membro da comunidade pode acompanhar de forma personalizada um ou mais iniciandos e suas famílias, os conhecendo, ajudando-os e sendo testemunhas de seus percursos de fé e desejos de discipulado (cf. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, n. 42). Essa personalização da catequese é, na verdade, um ministério específico de quem aqui colocam-se como uma espécie de “introdutor” desses iniciandos. Nesse processo, se propõe um tempo de pré-catecumenato, que é o nome do 1º tempo em que um membro da comunidade faz o acompanhamento espiritual e pessoal de maneira informal e com simplicidade do iniciando e sua família que buscam a catequese.  Nesse 1º tempo é feito o anúncio querigmático, ou seja, é nesse período que o nome, ensinamentos, vida, promessas, chegada do Reino e mistério pascal de Jesus de Nazaré são anunciados por um tempo adequado aos iniciandos para lhes despertar a fé e prepará-los para a catequese propriamente dita. Pode-se para isso usar os textos bíblicos dos evangelhos da liturgia do Domingo por meio da Leitura Orante (Lectio Divina). Durante a quarentena, esse acompanhamento pode acontecer também online”.

Diretório Para a Catequese (2020) by João Melo on Scribd

domingo, 24 de maio de 2020

A reunião ministerial do Messias



Jesus escolheu um grupo de colaboradores para ajudá-lo em seu ministério, os apóstolos (At 1,2). Certa vez, pediu a eles uma reunião na Galileia (Mt 28,16). Era a última daquele tipo, e o tema da pauta era importante para “todas as nações” (Sl 46,8-9), “até os confins da terra” (At 1,8). O que sai da boca de Jesus não é palavreado chulo, Jesus fala do Reino de Deus (At 1,3) e comunica esperança (Ef 1,18). Ele poderia ter xingado, agido com autoritarismo, forçado a barra para que o projeto em que vinha trabalhando fosse colocado em prática logo: o Reino de Deus (At 1,3). 

Mas não. 



Jesus não escolhe o caminho da idolatria da sua autoridade. Exousia. Essa palavra grega que pode ser traduzida como autoridade aparece três vezes nas leituras da liturgia católica desse Domingo da Ascensão do Senhor. 

Exousia refere-se à autoridade do Pai que é dada a Jesus Cristo (At 1,7; Ef 1,21; Mt 28,18). A exousia de Jesus é expressa na sua liderança do grupo dos apóstolos, seus colaboradores escolhidos (At 1,2). Enquanto Cabeça da Igreja (Ef 1,22), Jesus ultrapassa o discurso chulo e vazio, Ele FEZ e ensinou (At 1,1), Ele mostrou vida (At 1,3). 

Sua Exousia é carisma, dom do Espirito Santo (At 1,2) que Ele doa também aos que se comprometem com a radicalidade do Reino de Deus (At 1,5; Mt 28, 19-20) ao qual Ele tanto instruiu (At 1,3). Ao invés de panelaços, a exousia de Jesus é festejada ao som de trombetas e harpas, por entre aclamações de alegria (Sl 46, 2.6-8). 

Ah! A verdadeira autoridade! A verdadeira exousia é bonita de se ver! Ela agrega e nos faz ter o desejo de ser testemunhas do verdadeiro Messias (At 1,8; Mt 28, 19-20). Ela enche os nossos corações de luz (Ef 1,18) e nos faz caminhar na certeza de que, apesar da falta de boas lideranças, não estamos abandonados. O Galileo nos acompanha todos os dias, até o fim do mundo (Mt 28,20).  

quarta-feira, 6 de maio de 2020

O eclipsar de Deus em tempos de Covid-19

“Afastastes de mim meus parente e amigos (...)
Eu estou aqui preso e não posso sair” (Sl 87,9)

A escuridão sobre a terra (Mc 15,33) era vista como praga (Ex 10,22-23). A maior característica de uma praga é a morte em massa, como a peste negra medieval, a gripe espanhol moderna e a Covid-19 da época contemporânea. Nessas horas, a pergunta que sai de dentro como num grito em prece (Mc 15,37) é: “Eloí Eloí lemá sabactâni?” (meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?) (Mc 15,34). E as vezes a resposta imediata é um silêncio prenhe de escuridão (Mc 15,33). A experiência da tristeza mortal e da agonia (Mc 14,33-34), mas também do sofrendo e da morte (Mc 15,37) fizeram parte da experiência da humanidade inteira ao longo de todos os tempos. Por meio de sua paixão e morte de Cruz, Jesus participa do mesmo sofrimento humano.


Jesus também experimentou esse eclipsar do Pai quando da sua morte (Mc 15,33-34; Lc 23,45). Na hora de maior brilho, meio-dia, contraditoriamente é quando uma escuridão quarentenou a luz da terra de Israel e seu Templo (Mc 15,33). De fato, em tempos antigos, o povo de Israel experenciou esse profundo eclipsar do Pai com a realidade do exílio. Hoje, a quarentena que nos priva do banho de sol nas ruas, nos obriga a um exílio dentro de nossas próprias casas. Que sinal essa escuridão nos comunica (Jl 2,1-2; Sl 105,28; Is 50,3-4; Ez 32,7; Jr 15,9)? Luto (Am 8,9-10)?

Ora, as mortes e o luto das famílias que padecem com Covid-19 não podem ser objeto de desrespeito e zombaria. Zombaram também de Jesus na hora de sua morte, com a lenda de que Elias milagrosamente iria o resgatar da Cruz: “Olha, ele chama por Elias”, “Deixem-no e vejamos se Elias vem tirar ele daí” (Mc 15,35-36). A zombaria continua: “E daí?”, “É uma gripezinha!”. Jesus segue sua paixão e morte na pandemia de nossos dias.

No relato segundo Marcos, a morte de Jesus provoca reviravoltas (Mc 15,38-39): O véu do santuário é rasgado, indicando ruptura com o sistema religioso (Mc 15,38), e uma novidade, um pagão, o centurião, proclama a identidade de Jesus (Mc 15,39). Ruptura e novidade são reviravoltas provocadas pela escuridão eclipsar da morte de Jesus. Ruptura e novidade são apelos para épocas de escuridão eclipsar. Com o que vamos fazer ruptura? Qual será a novidade pós-Covid-19? Martin Buber (1878–1965) certa vez contou:

"Quando, no dia de sua criação – diz uma lenda judaica –, os primeiros homens rejeitaram a Deus e foram expulsos do jardim, pela primeira vez viram o sol se pôr. Ficaram amedrontados, porque não conseguiram entender tal fato a não como se, por sua culpa, o mundo estivesse voltando a mergulhar no caos. Durante a noite inteira os dois ficaram sentados, um diante do outro, chorado, e sua conversão aconteceu. Então raiou a manhã" (BUBER, M. Eclipse de Deus. Campinas: Verus, 2007, p. 26).

A humanidade inteira precisa de um tempo penitencial. Precisamos do nosso “meio-dia à nona hora” que Jesus viveu junto ao povo na Cruz (Mc 15, 33-34). Precisamos nos permitir sentir algum abandono do Pai, “Eloí Eloí lemá sabactâni?” (meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?) (Mc 15,34), precisamos também gritar nossas dores que nos fazem buscar Deus nas profundezas de nosso ser (Mc 15,37). Precisamos de tempo para chorar nossas mortes e, então, responder aos apelos de ruptura e novidade (Mc 15,38-39). Em suma, precisamos viver a quarentena.

Com a sua profissão de fé, o Centurião pagão estava apto para o seguimento a Jesus (Mc 15,39). A novidade de sua fé era novidade para toda a comunidade cristã nascente. Essa novidade nasce da morte de cruz, do eclipse de Deus em Jesus. Todo eclipse é transitório e toda escuridão é passageira. Ao mesmo tempo, na Morte de Jesus segundo Marcos, é possível vislumbrar que toda escuridão é prenhe também de apelo ao novo que rompe com a zombaria da indiferença do sofrimento alheio e chama à conversão. A luz vai raiar amanhã.